A última carga de cavalaria

Amedeo Guillet que morreu de morte natural em Roma no dia 16 de Junho 2010, barão na pequena nobreza do Piemonte leal à casa de Saboia que, na tradição dos seus antepassados, seguira a carreira das armas, escolhera cavalaria na Academia Militar de Modena, tão bem se houvera que fora escolhido para fazer parte da equipa italiana de hipismo nos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, mas conseguira por contactos familiares ser, em vez disso, integrado em tropas italianas mandadas combater em África, primeiro na Líbia e mais tarde na Eritreia, onde Mussolini tentava derrotar guerrilha fiel a Hailé Selassié, o Négus da Abissínia que se rendera ao poder colonial de Roma, e depois do começo da Segunda Guerra Mundial também tropas britânicas baseadas na Somália. Nesses anos de luta em que, jovem tenente, comandara uma brigada de soldados eritreus - cavalgando em todas as operações à frente dos seus homens com tal heroicidade e eficácia que ganhara para sempre a alcunha de 'Comandante Diabo' - com tal equanimidade e justiça tratara os seus soldados africanos que, quando em 2000 visitara a Eritreia a convite do Presidente, os sobreviventes da brigada, cerca de duas centenas, quiseram reencontrá-lo, tendo ficado na história da arte da guerra por ter comandado a última carga de cavalaria conduzida contra tropas britânicas. No intervalo entre as suas duas passagens por África fora mandado para a Guerra de Espanha, cuja barbaridade deixara nele duas marcas: poupar o mais possível populações civis e, juntamente com leis anti-semitas de Mussolini, repugnância pelo fascismo.

Na madrugada de 21 de Janeiro de 1941, numa remota clareira do Corno de África, onde forças britânicas tinham acampado na véspera com tanques e carros de assalto e se preparavam para continuar viagem ao romper do dia, a cavalaria eritreia de Guillet, saída de repente do mato com ele à frente, disparou espingardas e atirou bombas e granadas aos alvos britânicos imóveis, cujos canhões quando começaram a ripostar não tinham acertado a altura de tiro e causaram muitas baixas na sua própria gente. Criado o caos e deixando também mortos, a cavalaria eritreia sumiu-se no mato. Por ter sido a última carga clássica de cavalaria, o feito ficou célebre, mas foi apenas um episódio da luta sem tréguas conduzida por Guillet contra os ingleses que ganharam respeito militar e humano por ele, luta que depois da rendição de Mussolini fora mantida como guerrilha por ordem do duque de Aosta, comandante italiano em África a fim de aí fixar o maior número de britânicos possível. Guillet era para estes o Lawrence da Arábia italiano, falava árabe e eritreu, usava o nome de Ahmed Abdulla Al Redal e, ao contrário de Lawrence - como convinha a um italiano -, tinha uma namorada linda que combatia a seu lado, a princesa Khadija, filha de um chefe local. Com a guerra a virar conseguira chegar ao Iémen e daí partir clandestino para a Europa onde, diria depois, nunca julgara poder voltar.

A princesa ficara na Abissínia; em Cápua, Guillet reencontrou a sua prima e noiva Beatrice com quem veio a casar; depois da rendição de Itália fez missões arriscadas para os ingleses em partes do país ainda ocupadas pelos alemães; quando a monarquia foi abolida quis ir viver para o estrangeiro mas Umberto II proibiu-o e ele, sempre fiel à Casa de Saboia, obedeceu ao monarca deposto. Pensou primeiro estudar antropologia para que tinha jeito e bagagem mas decidiu ser diplomata, acabando embaixador na Índia, depois de postos no Médio Oriente. Era um homem sábio - "Os árabes são um corpo sem cabeça e os judeus uma cabeça sem corpo" - e depois da reforma foi criar cavalos para a Irlanda, montando-os já com 90 anos. O Presidente da República impôs-lhe a mais alta ordem militar italiana. No seu enterro compatriotas das mais diversas cores políticas vieram homenageá-lo, incluindo, como fez notar um jornal inglês, os membros da família real italiana que ainda falam uns com os outros.

José Cutileiro.

Texto publicado na edição do Expresso de 10 de Julho de 2010